Epidemiologia das águas residuais, guardiã da saúde pública

Autora:
Vanessa Luís
Chief Molecular Scientist, Global Biosciences Center da SGS Portugal

A análise de amostras de águas residuais revelou-se uma ferramenta essencial para monitorizar doenças, consumo de drogas, resistência a antimicrobianos e muito mais.

A informação que pode ser recolhida a partir da análise de amostras de águas residuais não é só vasta, como pode ser determinante para a saúde geral de uma população. Porquê? Porque tem o potencial de ajudar a medir a ocorrência, propagação ou ressurgimento de doenças, o consumo de drogas e outros indicadores biológicos ou químicos numa população, o que, por sua vez, pode melhorar as respostas de saúde pública.

Águas residuais e monitorização de doenças

Durante a pandemia da COVID-19, cresceu de forma exponencial o interesse por esta estratégia de monitorização da propagação e evolução do vírus SARS-CoV-2 e dar resposta às necessidades impostas por uma doença que, de repente, nos mudou a vida. Mas o seu potencial vai muito além desta funcionalidade, sendo o seu âmbito de aplicação alargado a outros indicadores, como álcool, tabaco, agentes patogénicos, terapêuticas e marcadores de resistência antimicrobiana.

Consumo de drogas

A avaliação da presença de agentes químicos ou biológicos em amostras de águas residuais começou por ser mais usada como indicador do consumo de drogas ilícitas. Em 2005,  um grupo de investigadores publicou um dos primeiros estudos de prova de conceito para estimar o consumo de drogas numa população através da medição de cocaína e do seu metabolito urinário em águas residuais e superficiais de cidades italianas.

Um estudo que confirmou que estas substâncias podem ser detetadas nas águas residuais e que acabou mesmo por ser uma estimativa de consumos mais correta do que a recolha de dados feita de forma tradicional (através de inquéritos ou entrevistas aos consumidores e registos médicos).

Mas esta ferramenta permite também estimar a presença de outras substâncias, como metanfetamina e MDMA, assim como drogas consideradas legais (é o caso do álcool e da nicotina).

Consumo de medicamentos

A análise de águas residuais permite também a medição da concentração de fármacos que, em conjunto com dados complementares como a prescrição, permite identificar padrões de utilização, adesão à terapêutica e/ou uso indevido.

Há ainda estudos que se dedicaram a medir a concentração de fármacos comuns nas águas residuais como indicador de prevalência de doenças, como a gota ou a diabetes tipo II, e até surtos através da deteção de antivirais prescritos durante um surto. Esta estratégia é um precioso auxílio na tomada de decisão, definição de medidas de prevenção e/ou a alocação adequada de recursos.

Medir a resistência aos antibióticos

A resistência aos antibióticos é, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, uma das maiores ameaças globais à saúde pública e ao desenvolvimento. Estima-se que a resistência aos antibacterianos tenha sido diretamente responsável por 1,27 milhões de mortes globais em 2019, tendo contribuído ainda para 4,95 milhões de mortes no mesmo ano.

O uso indevido e excessivo de antibióticos em humanos, animais e plantas é um dos principais responsáveis por este cenário, que afeta todos os países de todas as regiões, colocando em causa muitas das conquistas da medicina moderna, uma vez que torna as infeções mais difíceis de tratar e torna outros procedimentos e tratamentos médicos, como cirurgias, cesarianas e quimioterapia para o cancro, muito mais arriscados.

As águas residuais são uma das principais fontes de dispersão de resíduos de antibióticos no ambiente, contribuindo para o desenvolvimento e propagação de micróbios resistentes. Assim, a monitorização da presença de genes resistentes a antibióticos pode fornecer uma indicação de onde e em que extensão as bactérias resistentes são libertadas para o ambiente. Informação importante quando se trata de direcionar as medidas de mitigação de forma mais eficaz.